.

12/04/2016

Mafiosa

Foto/montagem: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Sempre gostei dessa coisa de ir ao cinema. Mas confesso, com certa nostalgia e pelos mais diversos motivos, que gostava mais disso nos meus tempos de adolescente. Talvez pelo glamour que envolvia o que eu considerava ser um evento social, na época. Pessoas bonitas, bem arrumadas, a fila, os ingressos, os casais de mãos dadas, essas coisas. Mas talvez, ou principalmente, por conta daquele colorido e estimulante balcão de doces que havia no hall de entrada.

E toda semana lá ficava eu, na torcida que algum namorado das minhas irmãs mais velhas cansasse da distância estabelecida para dois no sofá da sala e tivesse a fantástica ideia de tal programa! Como nem por todos os roteiros de Coppola minha mãe permitiria que alguma delas saísse sozinha com o namorado, sobrava pra mim, no melhor, mais bem recebido e mais doce sentido da expressão!

Óbvio que eu fazia toda uma cena. Reclamava, dizia que não queria ir e tal, só pra dificultar a vida do casalzinho. E claro, obter vantagens açucaradas pelo fato de estar sendo “obrigada” a largar minha divertida monotonia pra viabilizar o passeio dos dois. E lá ia eu, pulando de faceirice, mas convenientemente com cara de emburrada, “segurando a vela”. E segurava, na outra mão, uma porção de pacotinhos com balas, chicletes e várias coisinhas gentilmente oferecidas pra causar distração e comprar o silêncio da pessoa aqui enquanto o casal apaixonado assistia ao filme.

Como toda pentelha que se preza, foi numa dessas ocasiões que acabei descobrindo uma outra maneira até eficaz, mas que depois se revelou um tanto perigosa, de fazer aumentar as vantagens da coisa.

O filme era “O Poderoso Chefão”. Nunca havia visto Marlon Brando mais gordo e ainda não havia me apaixonado por Al Pacino. Não tinha idade nem para estar ali, nem pra perceber a obra prima que estava à minha frente e aquilo tudo me pareceu um saco! O sangue dos mafiosos espirrava na minha tranquilidade e os doces estavam acabando muito mais rápido do que eu queria. Era tudo muito tenso, não rolava nenhum beijo apaixonado, na tela, pra diminuir meu desconforto físico e emocional. A situação era estressante e o filme parecia muito longe de acabar. Me doía a bunda, as pernas e a saudade da minha cama. Inquietação total! Comecei a saracotear na cadeira, balançando os pés e achei bem interessante o barulho que fazia o meu sapato no encosto da cadeira da frente. Comecei a batucar na madeira no mesmo ritmo do tiroteio na tela.

Nem havia adquirido o gosto pela coisa quando o cara sentado ali, sacudido pela minha impertinência, virou-se, me ofereceu uma balinha e pediu, gentilmente, que eu parasse. Aceitei a bala. Achei ele um grosso, mas parei. Por uns dois minutos. Até tentei me controlar, mas minha impaciência não conseguiu entrar no clima. E logo estava eu, de novo, desconsiderando que por minha causa havia alguém ali, aos pulos, tentando ver o filme.

Isso se repetiu algumas vezes (e algumas balas), até que lá pelas tantas ele se virou, visivelmente irritado, e disse: “- Queridinha, toma! Tá aqui o pacote todo! Mas pára de bater na minha cadeira!” Achei ele um grosso, de novo. Mas aceitei as balinhas.

Me aquietei por um tempinho, até o pacote ficar vazio. E recomecei o despropósito.

Finalmente, o filme acabou. Pessoas se levantando, luzes acendendo e coisa e tal. Minha memória seletiva não me permitiu registrar com exatidão o que aconteceu em seguida, mas um arrepio estranho me percorre quando tento lembrar da cena. Quase posso  jurar que foi Don Corleone quem se levantou da cadeira à minha frente, tomou uma proporção gigantesca ao aproximar-se com aquele olhar mafioso e intimidante, botou o dedo na minha cara e disse, com sotaque de buldogue e entre dentes: “- Pirralha chata e malcriada! Agradeça aos céus o filme ter acabado! As próximas balas que eu ia te dar seriam aquelas!” – e apontou vigorosamente a tela.

Que coisa. 

Continuo gostando de ir ao cinema, mas por um certo trauma em relação às balas, prefiro pipoca. E nunca mais consegui ver “O Poderoso Chefão” sem me sentir ameaçada.


Helena Chiarello