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16/09/2011

Foi sem querer, mas...

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

         Era dia de comemoração.

       Saímos pra jantar e a escolha, para obedecer a um roteiro bem eclético, foi um restaurante japonês bastante conceituado em nossa cidade.

       Até aqui, tudo perfeito. Casa cheia, ambiente finíssimo, decorado com aquela belezura de bom gosto oriental, boa música, tranquilidade, ótima comida, excelente companhia. Fomos recebidos com o tradicional irashaimase (sejam bem-vindos), dito com reverência e cortesia por um rapaz que nos conduziu até a mesa.

         Até aqui, tudo bem também.

       Acontece que minha origem italiana e por extensão, ocidental, me possibilitou, ao longo desses anos todos, desenvolver inúmeras habilidades no manuseio dos maravilhosos e práticos garfo e faca. E um restaurante japonês vai te colocar à frente, conveniente e inevitavelmente, aqueles desequilibrados e temperamentais hashis no lugar de talheres. Claro que a gentileza do garçom vai oferecer a outra opção. Mas “em Roma, como os romanos”. Então, aos hashis. Mas claro, optando por aquela esplêndida solução de usá-los amarrados com elástico, o que os transforma numa espécie de pinça para facilitar a vida dos iniciantes. Ou desajeitados, como é o meu caso.

       Apesar de não apreciar adequadamente alguns quitutes in natura da cozinha oriental, sabia que haveria alguns salvadores e saborosos “cozidos ou assados” no cardápio que me livrariam de uma "saia justa" gastronômica. E claríssimo que a escolha do meu prato, como sempre, obedeceu rigorosamente ao critério do “isso é fácil de segurar”.

       Pratos servidos, conversa agradável e descontraída, brincadeiras em relação à minha excessiva concentração no manuseio (ou hashiseio?) dos alimentos, acompanhadas de justificativas de minha parte por conta da exagerada pressão do elástico no meu hashi, que o deixava demasiadamente aberto, sendo necessário um esforço ninja para segurar o que devia ser segurado. E entre risos e brincadeiras, a noite transcorria agradável e festiva.

       Mas claro que nem tudo foram flores. Ou bambus. Na mesa ao lado, num volume de voz que não nos permitia a discrição de deixar de ouvir, duas ilustres senhoras conversavam, digamos, rumorosamente, sobre viagens e grifes, bolsas e sapatos, jóias e perfumes e todas as coisas essenciais a cada uma delas. Confesso que nos chamou a atenção a quantidade de vezes que o garçom (o mesmo que nos recebeu tão cordialmente) foi solicitado àquela mesa. E todas as vezes com alguma exigência ou reclamação que destoavam da harmonia, da educação e da tranquilidade do ambiente.

       Foi então que aconteceu. A distinta e volumosa senhora havia acabado de chamar, mais uma vez, o rapaz. Fazia um discurso sobre o quanto o atendimento estava deixando a desejar e o repreendia pela demora em trazer a conta. Ele transpirava de nervoso, e polidamente tentava se desculpar, tratando com o máximo respeito e gentileza a quem dessas qualidades, obviamente, não sabia fazer uso.

       Não pude deixar de pensar que se ele dominasse o Bu-Shi-dô ou quaisquer outras artes de guerra, as duas corriam sério perigo, porque até para um samurai, paciência e servidão têm limites.

       O que veio a seguir não foi proposital, eu juro! O meu "hashi-catapulta" foi o culpado. Aproveitando-se da luta injusta entre a cultura milenar do instrumento e a minha falta de jeito, um camarão kamikaze e desgovernado lançou-se como um bólido do meu prato, aterrissando direta e espalhafatosamente no decote da "educada" senhora.

       Depois de suspender a respiração por alguns instantes e arregalar os olhos desejando com esse gesto desviar a decidida trajetória do dito cujo, voltei imediatamente a atenção ao prato e continuei comendo como se nada houvesse.

    O garçom viu, mas fez que não viu. As pessoas à minha mesa disfarçaram magnificamente. Com uma cara de nojo de tirar o apetite da humanidade, a mulher olhou o próprio peito e retirou o petisco do farto “aeroporto”. Passou um guardanapo para limpar as gotas de shoyu que aproveitaram a carona e olhou para todos os lados, indignadíssima, tentando descobrir a origem do projétil. Graças a alguma deidade xintoísta de plantão, não fui descoberta.

       As duas pagaram a conta e saíram, visivelmente aborrecidas. Que pena! Continuamos o jantar, com um comportamento irrepreensível, com uma elegância digna da Vogue, até que as duas desapareceram no portão do restaurante. Aí, a gargalhada foi geral. Passamos o resto da noite nos divertindo com a singularidade do acontecido.

       Na saída, o garçom nos acompanhou até a porta, agradecendo nossa presença com a mesma cordialidade e reverência com que nos recebeu. Só que agora, ele tinha um sorriso largo, agradecido e divertidamente cúmplice. Tenho certeza que se sentiu vingado.


Helena Chiarello


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07/09/2011

Na falta (de vontade) do que fazer...

Foto: Anderson Fabiano - arquivo pessoal

.   . Uma das coisas que gosto, quando a preguiça de fazer algo útil me abraça, é espiar os motivos que levam as pessoas a visitarem meus blogs.

..... Isso se torna possível graças ao Feedjit, uma ferramenta espertíssima de live traffic, que me permite visualizar em tempo real as visitas que recebo e registra alguns dados, como o local de procedência, a partir de que página o site foi acessado e, em casos específicos, quais assuntos estavam sendo procurados e que os visitantes esperavam encontrar naqueles espaços.

..... Sempre tenho boas surpresas. Algumas me motivaram a anotá-las para quando me inspirasse a escrever esse texto. E as transcrevo exatamente como foram inseridas na busca do Google.

..... No Revelar, alguém procurou saber “qual é o sentido da vida”. Bem que eu gostaria de ter uma tese completa sobre isso. Uma pessoa buscou “porque se escuta o som das ondas do mar dentro das conchas”. Estar apaixonada pode ser uma excelente razão (as demais não são tão poéticas). Outra queria informações sobre “respiração afogada”. Apesar de não ter escrito especificamente sobre o assunto, tenho algumas (ótimas) teorias a respeito.

..... Já tentaram esclarecimentos sobre “pessoas que tem visões”. Não sei o que andei dizendo por lá que levou a isso. Sobre “crianças inquietas”, até procede, porque às vezes me sinto assim (interiormente, claro). Meu poema “The answer is blowing in the wind” já enganou muita gente à cata da música. Mas “revelar senhas, revelar fotos, revelar o futuro, os sonhos e as formas de revelar o amor” são sempre campeãs de busca. Chego a pensar que o povo gosta de revelações. Algumas, já desejei também conhecer as respostas.

..... No (in)foto, já procuraram “fotos de decoração do altar para a festa de São Francisco”. Não devem ter encontrado. E quem buscou por “caçador de belezas e talentos” (!?) deve ter achado o blog uma porcaria. Não decepcionei totalmente quem pesquisou “fotos estradas de ferro desta catarina” (!), mas não contei o que queria saber quem procurou a “história da árvore de "eucalipito” e “reflorestamento de "pinos”. E fiquei imaginando o quanto deve ser surreal e metálico um reflorestamento assim.

..... Essa semana, no FotoGrafismos, duas pesquisas, no mínimo, intrigantes: “figuras escuras da floresta araucária” e “foto de fantasma de casarões antigos”. Não me lembro, sinceramente, de ter fotografado coisas tão sombrias ou espectrais como essas. Em seguida, alguém com espírito mais científico, mas com uma estranha necessidade de contestar a Lei de Newton, queria ver “fotos de cachoeiras caindo de rio acima”. Fiquei pensando onde diachos estaria a força da gravidade na hora de uma foto assim.

..... Mas de todas, a pesquisa mais divertida talvez tenha sido feita aqui, no Meia Vida Inteira, motivada pela dúvida de alguém: “água na concha para crescer os seios resolve?” Desconfio não ter dado a resposta. Mas sei com certeza que decepcionei demais quem queria um “trabalho pronto sobre Pablo Neruda”. E estou certa também de ter enganado uma porção de gente com a crônica “Efeito Borboleta”, que não deve ter atendido satisfatoriamente à curiosidade científica de quem chegou a ela.

..... Uma pena que, depois de determinado número de entradas, as mais antigas acabam apagadas. Devo ter perdido coisas interessantíssimas, como a que acabei de ler e que me moveu a concluir, agora, esse texto: “epitafio porque se morri de amor”.

..... Tomara que a pessoa que pesquisou tenha apenas cochilado ao digitar e esteja vivinha da silva. Mas que me deu um arrepio por pensar que poderia ter sido uma pesquisa do além, deu mesmo.


Helena Chiarello

27/06/2011

FotoGrafias

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal


De vez em quando, nada melhor que calça jeans, camiseta, um tênis velho e confortável, mãos no volante, caminhos inusitados e música. E a tarde e a paisagem inteiras à disposição.

E saio por aí, como quem nunca ouviu falar em técnica ou precisão, apenas com a intuição e a câmera na mão, transformando em pixels as muitas coisas que me impressionam.

É nessa hora, com a mesma Alma Nova que o Zeca Baleiro gosta de cantar comigo, que aprendo a esquecer horários, obrigações e normas e a sentir de perto tudo aquilo que abre clareiras na alma e escreve poemas na emoção.

As árvores e os momentos verdes, céus, estradas, flores, pontes, lagos, entardeceres, sóis, chuvas, lugares que amo e espaços que gosto de ver e estar.

Já pensei que seria maravilhoso poder registrar, além das imagens, os cheiros, as sensações, os silêncios interrompidos por pássaros, rios, cascatas e vento nas folhas. Mas não teria a mesma graça. Bom mesmo é fazer parte do cenário e poder respirar o instante, nutrindo a vida com muita beleza e paz. E a desculpa de fazer fotos me proporciona isso.

Claro, nem tudo são flores. Há barrancos e tombos, atoleiros e imprevistos, espinhos e dedos espetados, mosquitos, cães indesejados e lagartos inesperados. Mas há também os pés descalços na água fria, os joelhos no chão e uma vontade alegre e aventureira que sobe em árvores, que grita e ri de sustos, que descobre caminhos e tenta superar os medos de altura para fotografar cachoeiras incríveis e aquelas vistas da cidade de cima de um muro que, pela localização e “altitude”, bem poderia estar no Guinness.

Vale muito registrar as paisagens urbanas e o encantamento de cenas e imagens que transpiram a poesia de outrora, e transformar em imagens as sensações dos lugares que a vida me possibilita estar. Construções antigas, prédios em ruínas, casarões de um tempo muito anterior a essa modernidade (não menos bela) em que vivemos e que me colocam o pensamento e a emoção dentro de cada um deles, vivendo as vidas, sentindo os cheiros, ouvindo os sons e o eco de muitas histórias guardadas no tempo.

Longe de serem perfeitos, os resultados me animam. E há muito ainda por ver e, em fotos, grafar.

A ideia inicial de minhas brincadeiras fotográficas era mostrar o inverno, o gelo e o frio da minha cidade natal. Agora, são as primaveras, os verões, os outonos... E todas as outras “estações” de tempo, lugar e vida que me chamam lá. E de um jeito irresistível.

Por isso, quando não estou aqui, é porque estou [aqui]. E adorando!


Helena Chiarello
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Sempre que te vejo assim
...Minha velha alma
Cria alma nova
Quer voar pela boca
Quer sair por aí...
[Zeca Baleiro]
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02/06/2011

Quem disse que frio é romântico?

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Sábado cinzento, dia glacial. É outono ainda, mas as temperaturas dos últimos dias são de um inverno pra pinguim nenhum botar defeito. Sabe Deus o que vem por aí.

Acordo com preguiça, dou uma espiada no relógio. Já não é tão cedo assim e tenho montes de coisas a fazer. Viro pro lado, dou outra espiada no dia pela fresta da cortina. Tudo pálido e esfumaçado, quase branco. Mais preguiça.

Termômetro, quatro graus negativos, agora. De madrugada deve ter feito uns três graus a menos. Melhor nem ter olhado. Haja disposição para sair da cama. Mas vamos lá, dizem que frio é psicológico. Vou fazer um pensamento positivo-terapêutico para acreditar que nem está tão frio assim, então.

Rotina, um banho pra acordar o corpo. Ligo o aquecedor que não adianta nada. Coragem. Abro o chuveiro. Um ronco diferente me avisa que alguma coisa não está certa. Insisto. A água teima, congelada nos canos, mas acaba cedendo. Quase posso ver cristais de gelo nas primeiras gotas que caem. Arrepiada até os cabelos, fico na torcida que o sistema elétrico vença o frio. Mais coragem. Entro de sopetão embaixo da água. Nem consegui proferir o palavrão que me veio à boca, o queixo tremeu e travou, tão roxo quanto todo o resto. Devo ter batido o recorde de velocidade em banho. Tortura física. Aquilo de que frio é psicológico é tudo mentira.

Visto-me rapidamente, sobrepondo peças de roupa e meias de lã, num efeito estético digno de esquimó. O vapor dentro do banheiro me esconde o espelho. Ainda bem, nem vejo o resultado.

Etapa dois: casa e cozinha. Casa, tudo bem, arrumações rápidas e secas, apesar de frias. Corre-corre, ajeita aqui, arruma ali. Pronto. Agora, cozinha. Desânimo beirando desespero. A pia cheia de louças me olha e ri, sádica. Bendita lavadora de louças que não comprei, mania de achar que algumas coisas são dispensáveis. Arregaço as mangas (ai!) e vou à luta. É a torneira que ri agora, riso rouco de gelo e sarcasmo. Paciência. Aguardo mais um pouco, torneira aberta. Nem uma gota. Vamos ver quem ganha. Uso algumas estratégias. Ruído mais forte, um som de sólido sobre os pratos. O gelo, em cubo cilíndrico cai, liberando a água. Ganhei! Ou perdi? Começo a lavar a louça. Arre!! Essa semana mesmo providencio uma torneira elétrica, juro! Concluo com extremo e arrepiado esforço a tarefa, seco rapidamente as mãos, verificando se não perdi nem um dedo. Estão todos aqui. Cianóticos, mas estão.

Etapa três: padaria, supermercado. Sair à rua, mesmo para compras rápidas, teria sido uma coisa que eu dispensaria hoje. Agora sim, me obrigo a dar uma olhada no espelho. Fica feio ir ao mercado de pantufas? Fica. Coloco algo mais apresentável e lá vou eu. O vento úmido acentuando a sensação térmica me deu de presente, agora, orelhas roxas. Tive a impressão de que se eu tocasse nelas, esfarelavam. Senti saudade de ter cabelos longos. Voltei o mais rápido que pude, guardei as compras, coloquei as palmas das mãos sobre as orelhas (ainda estavam ali!), puxei a gola da blusa de lã sobre o nariz que lembrava o de um artista de circo, devolvi a pantufa aos pés para recuperar a circulação e a sensibilidade.

Obrigações cumpridas, aleluia! Vamos à parte boa. Um café quentinho, abrir e-mails, comentar amigos, ler, escrever. Enrolada num cobertor, óbvio. O calor do fogo não me alcança aqui, nesse cantinho “internético”.

Tentei escrever, comecei três poemas, falando de verão, de calor, de sol, de mormaço, de suor e tudo o mais. Mas o frio, ciumento, não me deixou terminar nenhum deles. As ideias ficaram encarangadas como as mãos que as digitavam. Desisti.

Resolvi escrever sobre o clima dessa sucursal do Polo Norte. O de hoje, especificamente. Isso pra nem lembrar aquele dia que fez os famosos 14 graus negativos que colocaram minha cidade no recorde oficial brasileiro de temperatura mínima. Nem aqueles das infalíveis geadas, nos quais o ar glacial que me invade os pulmões e refrigera o corpo todo me lembra o fantástico sistema daquelas serpentinas pra gelar chope. Nem os de neve (tão lindos, não!??) que frequentemente aqui ocorrem. Melhor nem tocar no assunto.

Ainda bem que amanhã é domingo. Danem-se o frio, as torneiras e chuveiros congelados e o vento cortante. Vou acordar tarde, depois do sol, se ele vir. E ficar torcendo que na segunda-feira eu não tenha que raspar o gelo do para-brisa durante o trajeto até o trabalho e consiga executar tarefas simples como andar, falar e movimentar-me sem o receio de congelar e quebrar no meio de cada uma delas.

Pensando mais além e não sendo tão insensível, se o frio me atinge dessa forma, com todo conforto que tenho, o que dizer de quem não o tem? Tema para um outro escrito, bem menos divertido e imensamente mais sofrido.

Então... Podem pensar o que quiserem e até discordar da ideia, mas frio como esse aqui só é romântico quando eu penso nele, em pleno verão, debaixo de um solzão de rachar, deitada numa cadeira de praia, rodeada de areia e mar por todos os lados.

...Quanto falta pra chegar dezembro?


Helena Chiarello


(Escrita em Junho de 2008, em Caçador-SC, num dos dias mais frios que tive notícia. Republicada hoje, porque o frio que fez aqui essa noite me trouxe sensações bem parecidas).

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02/04/2011

Poderosa!

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Acordei hoje, mais uma vez, com a excessiva alegria domingueira do meu vizinho.

Ele adora despertar a si próprio (e a todo o bairro) com o som ligado num volume incrível, colocando a sanidade alheia em colapso quando aqueles ruídos ultrapassam o limite humanamente suportável de decibéis.

É impressionante como numa época de tantas qualidades e novidades musicais, com tanta coisa boa por aí, o cara ainda insiste (e faz tempo isso!) em colocar, quase todos os santos domingos, uma poderosa rainha do funk a cantar a todo volume e, provavelmente, a dançar rebolando a bunda, bem próximo à ainda adormecida janela do meu quarto.

Sacanagem. Nem novidade a música é mais.

Acho que ele tem algum problema. Desconfiômetro avariado, talvez. Perda de memória recente, quem sabe. Ou então, alguma namorada funkeira a quem ele dedica essa serenata matutina. Mas pela berraça amplificada da coisa, penso que ela não deva morar tão perto.

Se quiser falar de amor, fale com o Marcinho... Vou te lambuzar, te encher de carinho...

Não tenho bem certeza do roteiro do que eu sonhava quando fui tão rudemente despertada, mas com certeza a trilha sonora era outra.

...Em matéria de amor, todos me conhecem bem, vou fazer tu vibrar no meu estilo vai e vem...

Essa parte é a preferida dele. Ele canta junto. Fico a imaginar o gesto que acompanha a frase.

...Minha catita doida, vou te dar beijo na boca, beijar teu corpo inteiro, te deixar muito louca...

Decorei a música sim! Mesmo que nem quisesse ou admitisse isso. Até o cachorro do outro vizinho já sabe a melodia e uiva no mesmo tom.

Me virei na cama. Bufei. Falei um palavrão. Apertei os olhos e soquei o travesseiro na cabeça, na vã esperança de fazer sumir aquele baile funk do meu quarto. Tentei dormir mais um pouco. Mas a glamurosa foi mais forte que eu. Tocou uma, duas, três vezes, no mais compulsivo e indiscriminado uso da tecla repeat.

...O funk do meu Rio se espalhou pelo Brasil, até quem não gostava, quando ouviu não resistiu...

Não resisti mesmo, mas do pior jeito. Não é que eu não goste de música, pelo contrário. E talvez eu não me aborrecesse tanto se concordasse com aquele gosto musical.

...Remexe gostoso e vai descendo até o chão...

Era lá que estava a minha paciência. No chão. Pensei coisas inconfessáveis. Tentei afastar a irritação e controlar a vontade de abrir a janela e demonstrar toda a minha educação (ou a falta dela), procurando pensar que se eu não, pelo menos ele e o cachorro uivante estavam felizes com aquilo.

Foi-se o sono, a tranquilidade, a disposição de ficar na cama pensando a vida e contemplando o silêncio. Fui vencida. Levantei, joguei com força as cobertas pro lado.

Tomar banho, tentar não ouvir, arrumar o quarto, tentar não ouvir, organizar as coisas, tentar não ouvir, ir pra cozinha e tentar ouvir menos. De lá o som até que era suportável.

...Vem, vem dançar, empine o seu po... (!!)

Não sei qual foi o motivo. De repente, ele cansou, acho. Ou a homenageada pediu, lá da distância em que estava para, por favor, desligar aquilo. Acabou a festa, o barulho, o cachorro, a música. Suspirei aliviada. Abençoado silêncio!

Quase feliz, comecei a preparar o almoço. Ainda havia esperança de acontecer, enfim, um domingo tranquilo e silencioso.

De repente, do nada, alguma coisa fez compasso. O mesmo ti-tum, ti-tum de antes. Susto. Parei pra ouvir. Nada, tudo quieto. Foi só impressão, aleluia. Troço esquisito. Sacudi a cabeça, me concentrei nas batatas que descascava.

...Glamurosa, rainha do funk, poderosa, olhar de diamante, nos envolve, nos fascina, agita o salão, balança gostoso requebrando até o chão...

Ela estava ali, a poderosa! Instalada feito praga na cabeça. Me fazendo repetir, sem que eu quisesse, aquele bendito refrão e a acompanhar o ritmo com batucadinhas da faca com a qual eu cortava os legumes. Ninguém merece!

A causa eu sei. Lavagem cerebral deve ser semelhante. O efeito, tenho ideia, mas controle nenhum sobre ele. Tentei ficar triste pensando no que eu gostaria de estar fazendo nesse feriado e não pude. Tentei me distrair elaborando mentalmente tudo o que eu tenho a resolver essa semana, mas nada. Nada tirava aquela musiquinha poderosa em me despertar todos os domingos e que se grudou feito chiclete na minha vontade de me livrar dela.

...Se tu não curte o funk pode crê tá de bobeira, bote uma beca esperta e se junte à massa funkeira...

E até terminar o almoço eu já havia cantado a música umas cinco vezes. Mas não rebolei a bunda, juro!
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Helena Chiarello
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(Publicada em 2009, no Recanto das Letras. E relembrada agora, por conta de um "vizinho novo" com hábitos semelhantes...)
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09/03/2011

Paz

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

.Ela veio nas asas de um pássaro.

Floco de algodão e nuvem,
pairou por um instante
sobre um pensamento
como quem flutua
sobre o vento.

Dançou círculos no ar
numa leveza de essência,
ornou-se de alvura e luz
e enterneceu as horas.

Então pousou,
suave e silenciosamente,
sobre um fôlego do tempo.

Paz.
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Helena Chiarello
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