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28/12/2010

Eu amei Pablo Neruda

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

          Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
          Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
          e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
          O vento da noite gira no céu e canta.

Quando tive, pela primeira vez, nos olhos e nas mãos os seus poemas, fui atingida. Fulminantemente.

          Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
          E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
          Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
          A noite está estrelada e ela não está comigo.

Pablo Neruda.

Aqueles versos me umedeceram os olhos. Os significados também. Li, reli. Recitei em voz alta, decorei, guardei.

Pablo Neruda.

O nome repetiu-se acompanhando as batidas do meu coração. Apaixonei.

Sabia pouco sobre ele, então. Só o que (me) interessava. Que escreveu essa obra com cerca de vinte anos, o que me fazia pensar que ele teria os mesmos vinte quando “o conheci”. Eu tinha quase treze. Perfeito! Sabia que era chileno.

          Amor, quantos caminhos até chegar a um beijo,
          que solidão errante até tua companhia!

Achei que o Chile nem ficava tão longe assim. Era logo ali, uma simples questão de horas.

          Mas para onde vá levarei o teu olhar
          e para onde caminhes levarás a minha dor.

Olhei através da fantasia e vi um rapaz jovem, moreno, alto e forte. Com voz de artista de cinema. Imaginei uns olhos verdes, profundos e tristes, olhando pela janela, pensando sobre a pessoa a quem ele escrevia. Imaginei uma camisa branca com as mangas arregaçadas descuidadamente, cabelos em desalinho, debruçado sobre seus versos e paixões. Imaginei e criei. Sonhos e histórias.

          Para meu coração basta teu peito
          para tua liberdade bastam minhas asas.

E eu voava. Muitos poemas, alguns recortes colados nos cadernos. Fui colecionando. Cada vez que encontrava algum, em livros, diários de recordações ou semelhantes, copiava ou recortava e guardava. Imaginava um dia conseguir um pôster, enorme, para ter colado na parede do meu quarto, com aqueles olhos verdes brilhantes e tristes, para dar uma última olhada antes de apagar a luz e adormecer sonhando.

E o coração, batia. Cada vez mais.

          Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
          Como não ter amado os seus grandes olhos fixos?

Horas em frente ao espelho, ensaiando. Queria aprender os “olhos fixos”.

Olhava os meninos na escola. Fazia “olhos fixos”. Sem graça. Nenhum se chamava Pablo. E nenhum reparou nos meus olhos fixos.

          A noite... o mundo... o vento enovelam seu destino,
          e já não sou sem ti senão apenas teu sonho...

A paixão cresceu e me acompanhou pelo tempo em que duraram as minhas outras paixões adolescentes.

Um dia, o choque. O dilúvio. O caos.

A professora iniciou o momento (não a perdoo por isso) em que se desfaria impiedosamente meu encantamento. Foi um trabalho de escola. Trabalho em grupo. Fazer o mural da sala. Literatura. Meu grupo “escolhi” poesia. Pablo Neruda. Mas não só. A professora pediu mais. Biografia, imagens, ilustrações. Felicidade! Colar uma foto bem grande dele no mural. Para ficar olhando aqueles olhos verdes profundos e tristes. E quem sabe, fixos.

Mal esperei para ir à biblioteca, depois da aula. E fui. Sozinha, o grupo não podia. Tudo bem, eu faria o “sacrifício”.

Entrei atropelando algumas pessoas. Como se tivesse um encontro, eu tinha pressa. Pedi textos, dados, imagens, tudo. A bibliotecária trouxe.

Comecei pelos poemas, copiei muitos. De próprio punho e a lápis, era assim que se fazia.

Depois, a biografia.

Pablo Neruda. Biografia. Comecei a ler. “Neftali...” Neftali? Puxa, que nome... Mas tudo bem. Tinha um “Ricardo” logo em seguida que compensava. Não chegava aos pés de “Pablo”, mas era bonito.

“Poeta chileno, nascido em Parral...................... em 1904.”

1904! Meu Deus! Nunca fui boa em matemática, mas aquele cálculo se fez sozinho. Saltou do livro e me atingiu num soco o peito, quase me derrubou da cadeira. É isso mesmo? 1904? Não acreditei! 68 anos? Corri abrir os outros livros, achei a foto.

A foto! Se eu ainda não havia compreendido direito, naquele momento eu soube exatamente o que ele quis dizer com “olhos fixos”. Não só. Os braços também. O corpo todo.

          Talvez não ser,
          é ser sem que tu sejas...

Meus sonhos caíram, passaram do chão, junto com a vontade de continuar o trabalho. Fiquei pálida, tenho certeza. Fechei os livros, ajeitei a mesa, peguei minhas coisas. Olhei disfarçadamente para os lados. Ninguém notou. Saí devagarzinho, a princípio. Agradeci à bibliotecária (com ódio por ter dado o livro). Saí correndo dali com mais pressa ainda do que quando entrei.

          Vou-me embora. Estou triste: mas sempre estou triste.
          Venho dos teus braços. Não sei para onde vou.

E não sabia mesmo.

À noite, em casa, pensando no fora homérico, comecei a ler tudo o que havia colecionado. Me senti traída. Queria achar alguma coisa, qualquer coisa, que me fizesse entender o acontecido.

          Gosto quando te calas porque estás como ausente,
          e me ouves de longe, minha voz não te toca.

E lembrava da foto.

          Parece que os olhos tivessem de ti voado
          e parece que um beijo te fechara a boca.

E lembrava do quepe xadrezinho de lã na cabeça, igual ao do meu avô.

          Tu eras também uma pequena folha
          que tremia no meu peito.
          O vento da vida pôs-te ali.

E do cachimbo na mão.

          A princípio não te vi: não soube que ias comigo,
          até que as tuas raízes atravessaram o meu peito,
          se uniram aos fios do meu sangue,
          falaram pela minha boca,
          floresceram comigo.

Mas lembrava mais da poesia.

          Posso escrever os versos mais tristes esta noite...

A poesia! Era isso!

Atingida. Irremediavelmente. Definitivamente.

Era amor, sim. Mas tinha outro foco. Os versos. Aqueles versos que me umedeceram os olhos. Os significados também. Aqueles que li, reli, recitei em voz alta. Que decorei e guardei. Até hoje.

Ainda ensaio os tais “olhos fixos”. Um dia eu aprendo. Um dia. E não posso dizer que amei, usando o verbo no passado. Ainda amo.

          Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe...

E eu ouço, Neruda. Desde aquele dia. E sempre.
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Helena Chiarello
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28/11/2010

Spending my time

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Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Spending my time toca repetidamente e ecoa nos espaços ocos que me compõem. Era só pra distrair, não pra pensar. Spending my time com horas e vontades que passam avassaladoramente em branco, com uma lembrança que não se apaga do passado, com um presente que não tem forças para ser futuro. Em branco, como o tempo em que me disfarço da lucidez e da agonia a cantar e a dançar, sujeitando-me à alienação, ao fazer de conta que não entendo a tradução disso que toca, interfere, magoa e faz chorar, mas que devia ser apenas música. Estou perdendo. O tempo, a vontade, a esperança e tudo isso que me é tão caro e que parece estar sempre no fim.

(Escrito em fevereiro de 2010)


Helena Chiarello


31/10/2010

Primavera em nós

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Contemplo, de olhos fechados, a beleza do instante.
Abrem-se aos meus sentidos as essências da nova estação.

Sei o vento, carregado de vitalidade e pólen. Sei a força prestes
a soltar-se em sopros mágicos por todo o espaço que nos rodeia.

Sei de mim, de ti, de nós, da proximidade e prazer do toque,
que é o mesmo com que a natureza acaricia suas criaturas.

Sei a respiração suspensa, o olhar maravilhado, absorto,
fascinado e teu.

Caminho sobre o sopro da vida.
E sinto meu corpo envolto em brisa, manhã, suavidade e flor.

Amanheci em ti.
É primavera.
E sei o amor.

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Helena Chiarello


01/08/2010

É só uma tarde que chove...

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Há algo nessa coisa de chuva que me alaga a alma e me põe aqui, a tentar dizer quase sem conseguir manter a voz.

É só uma tarde que chove.

Mas é como se tudo se precipitasse dessa nuvem gigante que são os sentimentos. Nada sobra em seco no pensamento que está para lá de onde alcanço - que é onde pousa a intenção que me acolhe e aconchega.

Com os dedos embargados de distância, escrevo-te, confidente. A pensar em ti como um dia claro de sol. A não me entristecer por essa melancolia de ver o tempo molhando-se quase como um artifício de compaixão para algumas lágrimas que teimam - não de dor - mas comovidas nesse inventar palavras para disfarçar o que dizer a ti.

As gotas lá fora respingando indiferença e eu aqui a achar que podem arrefecer o calor, a sede - e isso tudo que quanto mais me falta, mais meu corpo pressente e arde.

Saboreio essa vontade que me traz inquietude e pressa, momento e gesto, sorriso e voz - juntando tudo numa febre que só o coração conhece. E provo-a devagar, absorta nessa tarde - de chuva, de pensamento, de imagens a nascer e a brilhar em poças de água - à espera de talento e palavras suficientes para conseguir dizer todas essas coisas que me inundam e ao mesmo tempo, inflamam.

Então escrevo-te assim - propositadamente ilógica - como a ansiedade em abolir o tempo.

E a tentar abreviar a distância, insisto o sonho, secreto e íntimo, de onde estás a colocar um sol - imenso antes de arder - nessa tarde que [lá fora] chove.
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Helena Chiarello
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(Escrito em 24/08/09)
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31/05/2010

You learn

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Não sei por que às vezes gosto de ouvir música mais alto. Mesmo essa, que ainda há pouco sussurrava e se fez ouvir de dentro de um abraço. A mesma que me leva agora a mão ao botão do volume para colocá-lo numa altura que, quem sabe, o pensamento não alcance.

Talvez, para silenciar o tempo.
Talvez, para não ouvir a saudade.
Ou para ensurdecer todos esses quilômetros que te afastam de mim, enquanto.


(É noite. Ainda chove lá fora. Alanis quase grita ao invés de cantar, agora).


Helena Chiarello

28/02/2010

Universos

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Pairamos sobre o instante, naquela noite quente,
a partilhar emoções e palavras, a contemplar silêncio e céus.
Foi quando o olhar aconteceu mais próximo
e quando o tempo, subitamente, pareceu parar.
Tudo à volta deixou de existir e nenhum som mais se ouviu,
só o do pulso que movia a eternidade e o peito.

Ficamos sobre o tempo, respirando lento. A sós e a dois.
Lembro de ter riscado a noite uma estrela. Cadente e fugaz,
mas com o espaço e brilho exatos para um desejo.
Tua mão tocou a minha, em silenciosa resposta,

e o infinito ficou mais perto.

Penso que foi nesse segundo de luz

que o meu mundo se fundiu ao teu e expandiu todo o universo,
alterando-lhe o destino.


Helena Chiarello
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01/02/2010

Sobre palavras e flores...

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Não há como não reconhecer a essência das palavras.

Revelam-se pelas nuances do que traduzem
assim como salientam-se, pela cor, as pétalas.

E quando elas falam de amor,
são tão banhadas de luz
que resplandecem sobre todas as outras,
exuberantes e inconfundíveis.

Da mesma forma como sobressaem-se nos canteiros,
entre dezenas de flores, indisfarçáveis lírios azuis...
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Helena Chiarello

29/01/2010

Eu sei, talvez...

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

É lenta a força que me leva adiante a tentar desfazer os dias, as palavras e os gestos, a desejar não me ferir mais uma vez nessa esperança em ruínas, a tentar esquecer de vez o custo, o peso e a agonia desse meu passo cansado de percorrer o amor de forma tão sincera, cuidadosa e vulnerável.

Mesmo assim insisto e vou, a disfarçar os tropeços e a tentar não me deixar abater pela certeza de que sempre haverá o espanto, a brisa fria das verdades tecidas, a propositada investida das vozes agudas a emudecer a minha e a espraiada ironia dos risos fáceis a apagar o meu.

(Se ao menos eu pudesse derramar sobre a razão, gota a gota, essa sensação que me faz covas no peito, talvez conseguisse, ainda uma vez, desenterrar a alma.)

Eu sei, talvez, que como o tempo, tudo passa.

Eu sei, talvez, que é só por hora que permaneço aqui, na estridência desse silêncio, a desviar os olhos dessa clareza cortante, a fingir que há um lugar onde os instantes se apagam e toda a memória adormece.

Mas e a dor, como se esquece?


Helena Chiarello
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18/01/2010

Depois, é dia

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

É quando as horas foram mais longas que gosto de começar o dia assim, com uma alegria quase infantil a saltar da cama, a espiar pela janela os primeiros sinais de luz que veem trazer alívio à noite.
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Gosto desse instante em que a sombra chega ao seu limite e dilui-se entre os raios da manhã.
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Fico a apreciar a paisagem saída da madrugada, molhada de orvalho e confiança. Espreguiço-me demoradamente, ignorando a insônia recente com um encolher de ombros.
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Então respiro comprido, quase feliz por esse prazer insuperável de ver o sol nascendo, por esse gosto imaginário e indescritível de acreditar estarem se derretendo a noite, os pensamentos e os pesadelos à velocidade da luz.

Helena Chiarello
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