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02/04/2011

Poderosa!

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Acordei hoje, mais uma vez, com a excessiva alegria domingueira do meu vizinho.

Ele adora despertar a si próprio (e a todo o bairro) com o som ligado num volume incrível, colocando a sanidade alheia em colapso quando aqueles ruídos ultrapassam o limite humanamente suportável de decibéis.

É impressionante como numa época de tantas qualidades e novidades musicais, com tanta coisa boa por aí, o cara ainda insiste (e faz tempo isso!) em colocar, quase todos os santos domingos, uma poderosa rainha do funk a cantar a todo volume e, provavelmente, a dançar rebolando a bunda, bem próximo à ainda adormecida janela do meu quarto.

Sacanagem. Nem novidade a música é mais.

Acho que ele tem algum problema. Desconfiômetro avariado, talvez. Perda de memória recente, quem sabe. Ou então, alguma namorada funkeira a quem ele dedica essa serenata matutina. Mas pela berraça amplificada da coisa, penso que ela não deva morar tão perto.

Se quiser falar de amor, fale com o Marcinho... Vou te lambuzar, te encher de carinho...

Não tenho bem certeza do roteiro do que eu sonhava quando fui tão rudemente despertada, mas com certeza a trilha sonora era outra.

...Em matéria de amor, todos me conhecem bem, vou fazer tu vibrar no meu estilo vai e vem...

Essa parte é a preferida dele. Ele canta junto. Fico a imaginar o gesto que acompanha a frase.

...Minha catita doida, vou te dar beijo na boca, beijar teu corpo inteiro, te deixar muito louca...

Decorei a música sim! Mesmo que nem quisesse ou admitisse isso. Até o cachorro do outro vizinho já sabe a melodia e uiva no mesmo tom.

Me virei na cama. Bufei. Falei um palavrão. Apertei os olhos e soquei o travesseiro na cabeça, na vã esperança de fazer sumir aquele baile funk do meu quarto. Tentei dormir mais um pouco. Mas a glamurosa foi mais forte que eu. Tocou uma, duas, três vezes, no mais compulsivo e indiscriminado uso da tecla repeat.

...O funk do meu Rio se espalhou pelo Brasil, até quem não gostava, quando ouviu não resistiu...

Não resisti mesmo, mas do pior jeito. Não é que eu não goste de música, pelo contrário. E talvez eu não me aborrecesse tanto se concordasse com aquele gosto musical.

...Remexe gostoso e vai descendo até o chão...

Era lá que estava a minha paciência. No chão. Pensei coisas inconfessáveis. Tentei afastar a irritação e controlar a vontade de abrir a janela e demonstrar toda a minha educação (ou a falta dela), procurando pensar que se eu não, pelo menos ele e o cachorro uivante estavam felizes com aquilo.

Foi-se o sono, a tranquilidade, a disposição de ficar na cama pensando a vida e contemplando o silêncio. Fui vencida. Levantei, joguei com força as cobertas pro lado.

Tomar banho, tentar não ouvir, arrumar o quarto, tentar não ouvir, organizar as coisas, tentar não ouvir, ir pra cozinha e tentar ouvir menos. De lá o som até que era suportável.

...Vem, vem dançar, empine o seu po... (!!)

Não sei qual foi o motivo. De repente, ele cansou, acho. Ou a homenageada pediu, lá da distância em que estava para, por favor, desligar aquilo. Acabou a festa, o barulho, o cachorro, a música. Suspirei aliviada. Abençoado silêncio!

Quase feliz, comecei a preparar o almoço. Ainda havia esperança de acontecer, enfim, um domingo tranquilo e silencioso.

De repente, do nada, alguma coisa fez compasso. O mesmo ti-tum, ti-tum de antes. Susto. Parei pra ouvir. Nada, tudo quieto. Foi só impressão, aleluia. Troço esquisito. Sacudi a cabeça, me concentrei nas batatas que descascava.

...Glamurosa, rainha do funk, poderosa, olhar de diamante, nos envolve, nos fascina, agita o salão, balança gostoso requebrando até o chão...

Ela estava ali, a poderosa! Instalada feito praga na cabeça. Me fazendo repetir, sem que eu quisesse, aquele bendito refrão e a acompanhar o ritmo com batucadinhas da faca com a qual eu cortava os legumes. Ninguém merece!

A causa eu sei. Lavagem cerebral deve ser semelhante. O efeito, tenho ideia, mas controle nenhum sobre ele. Tentei ficar triste pensando no que eu gostaria de estar fazendo nesse feriado e não pude. Tentei me distrair elaborando mentalmente tudo o que eu tenho a resolver essa semana, mas nada. Nada tirava aquela musiquinha poderosa em me despertar todos os domingos e que se grudou feito chiclete na minha vontade de me livrar dela.

...Se tu não curte o funk pode crê tá de bobeira, bote uma beca esperta e se junte à massa funkeira...

E até terminar o almoço eu já havia cantado a música umas cinco vezes. Mas não rebolei a bunda, juro!
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Helena Chiarello
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(Publicada em 2009, no Recanto das Letras. E relembrada agora, por conta de um "vizinho novo" com hábitos semelhantes...)
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