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21/04/2014

Militante sem causa...

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal
       
          Não saberia precisar exatamente a data. Faz tempo. Eu devia ter uns 8 ou 9 anos e todo o avoamento e distração pertinentes à idade. 

          Naquele dia, a professora chegou à classe e, ao invés de começar a aula com a chamada e com aquelas intermináveis lições que faziam a hora do recreio ficar a quilômetros de distância da minha impaciência, ela disse: “Tirem uma folha do caderno. Vamos desenhar uma bandeira do Brasil para participar da passeata”.

          Menos mal. Vai ser aula de artes. Mas passeata? Que bicho seria esse? Nunca tinha visto nem ouvido. Passeata. Nem a minha costumeira curiosidade conseguiu ser forte o suficiente para me levar a tirar os olhos e a atenção da caixa de lápis de cor e dissipar a dúvida sobre o que seria aquela coisa.

          A folha do caderno era pautada, o que prejudicou um pouco a minha expressão artística. Caderno de caligrafia, porque tinha “o tamanho ideal para a bandeirinha” – disse a professora. Achei desproporcional. E meu losango ficou meio torto. O círculo mais lembrava um ovo, e a faixa central não foi grande o bastante para comportar a minha “ordem e progresso”. Mas caprichei nas cores. Verde, amarelo e azul, bem fortes. E as estrelinhas. Coloquei várias, porque achava bonito muitas estrelinhas. 

          Tarefa concluída, a professora instruiu sobre como colocar uma ripinha de madeira e fazer o “mastro”. Tudo pronto. Ela marcou o dia e horário: “Amanhã, todo mundo de uniforme, às três da tarde, em frente à catedral”. Não haveria aula por causa da passeata. Perfeito!

          No dia e hora marcados, lá fui eu, de bandeirinha em punho e muito amor no coração. Morava longe da catedral e caminhei pra caramba. Cheguei lá, nenhum sinal do que eu pudesse imaginar que fosse uma passeata. Não havia alunos, professores, uniformes, bandeirinhas, banda de música - conforme alguns disseram. Olhei para todos os lados, procurando por algo que me contasse onde estaria acontecendo a tal coisa. Andei, circulei a igreja, entrei, me benzi, ajoelhei, fiz eco na nave vazia. Por que será que ainda não chegou ninguém?

          Mas “passeatista” que se preza não abandona assim um evento, mesmo que não tenha a menor ideia do que ele seja. Saí procurando por uma aglomeraçãozinha de pessoas, um barulhinho de tambor, uma musiquinha, qualquer coisa que fosse. Até que achei.

          Ao lado da igreja funcionava um grande colégio, que estava com os portões abertos. Ouvi um burburinho e entrei. No pátio coberto, meia dúzia de bancos enfileirados, algumas poucas crianças sentadas neles com a atenção voltada para uma freira, de hábito e tudo, que tocava violão e cantava com uma animação bem contagiante!

          Fiquei parada, à distância, com minha bandeirinha na mão. Será que é aqui a passeata?

          A freira, num gesto carinhoso e sem interromper a canção, me fez entender que sim, com um sinal para que eu me aproximasse. Alívio. Finalmente, a passeata! Entrei, sentei, e fiquei agitando meu símbolo de patriotismo, acompanhando a cantoria. 

          O mais estranho foi a desorganização daquela turma. Ninguém havia feito bandeirinha e nem estavam demonstrando o civismo que era de se esperar numa situação dessas. 

          Claro que estranhei a falta da minha professora e colegas. Claro que estranhei a falta de todos os alunos da minha escola, que pareciam bem animados, no dia anterior, por conta do evento. Mas também, podia ter acontecido alguma coisa e eles não puderam vir, não podia?

          Quando tudo terminou, a freira guardou o violão e disse alguma coisa às crianças, que fizeram fila para o beijo de despedida. Beijei também. Ela sorriu, eu sorri. Virei as costas e fui para casa. Coloquei a minha bandeirinha num vasinho sobre o criado mudo, muitíssimo orgulhosa do dever cumprido.

          No dia seguinte, na escola, minhas amiguinhas vieram me encontrar, afoitas e com ar de preocupação, querendo saber por que eu não havia ido à passeata.

          Mas é claro que eu fui! Cantei, participei, agitei a bandeirinha e tudo, bem como a professora disse pra fazer!

          Nem preciso dizer que fiquei indignada com a falta de atenção das minhas amigas! Dei o assunto por encerrado, com a consciência mais tranquila que alguém poderia ter. 

          Não deve ter levado muito tempo para que alguma alma caridosa me esclarecesse sobre o significado do termo. Então, a ficha deve ter caído com a força de um hino nacional cantado em final de copa!

          Só não sei, até hoje, o que eu estava reivindicando, apoiando, comemorando ou “patriotizando”. E também nunca soube por que a tal passeata não estava onde eu tinha certeza que deveria estar!


Helena Chiarello