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26/02/2009

De ontem, de hoje e de sempre

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

____Alguns anos atrás, deparei-me com uma tarefa no mínimo esquisita, quando fazia minha especialização em Artes Plásticas.
_____A Orientadora da disciplina de Folclore Brasileiro havia solicitado uma autobiografia folclórica. Pensei: não vou ter nada para escrever sobre isso!
_____Voltei para casa com aquilo me cutucando o sossego, já pensando no que inventaria para não deixar de cumprir o trabalho. Adiei o máximo seu início, quase deixando para a última hora.
_____Um dia, com a menor vontade que tinha, sentei-me em frente ao computador. Rebusquei em minhas gavetas mentais qualquer coisa que eu pudesse relatar. Esforço mental de deixar a testa queimando.
_____Como se começa uma autobiografia? (Irritação!)
_____Com o nascimento da pessoa (No caso, o meu. E faz tempo isso). Mais esforço mental. “Vamos lá, escreve qualquer coisa, a primeira idéia que surgir. É só começar, o resto vem.” Repeti a mim mesma a frase tantas vezes dita aos outros.
_____Comecei a escrever.
_____Nasci no dia quatro de fevereiro, numa quarta-feira, às quatro horas da tarde. (Quase um número cabalístico.)
_____Por ocasião do meu nascimento, minha mãe foi atendida por uma parteira, o comum na época. Escrevi isso, parecendo tolas as palavras.
_____No exato momento do meu primeiro choro, tudo começou a acontecer, sem que eu esperasse ou compreendesse. De repente, lá estava eu, bebê ainda, desvinculada do cordão umbilical e envolta em camisetas do lado avesso para evitar que eu trocasse o dia pela noite (?) e perturbasse em demasia o sono dos outros, sendo lambida na testa onde eram colados (Com saliva alheia!) fiapos de lã da minha própria roupa com a finalidade de curar meus soluços, tomando banho com água de tijolo cozido para curar a icterícia fisiológica, as brotoejas e por aí afora. Nem pude ver se eu era bonita, porque os espelhos da casa estavam todos cobertos para evitar o reflexo pernicioso. (Foi a primeira palavra difícil que aprendi.)
_____Inúmeras vezes enfrentei simpatias e benzimentos contra “quebranto”. (O que seria mesmo isso?)
_____Meu primeiro banho só aconteceu depois de cair o coto umbilical, o qual foi enterrado com todas as honras a que “um pedaço do corpo humano” possa ter direito. (Achei exageradamente dramático!)
_____Pra não dizer que não falei nos chás curativos e milagrosos, tomei vários!
_____Por tudo isso, tinha uma saúde de ferro. Como todo bebê saudável, era exigente. Berrava de manhã à noite e como, aparentemente, não tivesse nenhum mal físico que justificasse a berraceira, as comadres diagnosticaram “arca caída” (Coisa que até hoje não sei o que significa! Mas deve existir, porque a minha caiu, sabe-se lá de onde). E lá foi a minha mãe à cata de benzedeiras e simpatias curativas, pois já estava deixando todo mundo com problemas de audição (Para o que, inevitavelmente, alguém conheceria outra simpatia). Mais um problema resolvido.
_____Minha mãe cantava para me ninar. Essa era a parte melhor de todas. Eram cantigas lindas! Quanta segurança e conforto! Como eram gostosos aqueles momentos! (Eu lembro, eu lembro!)_____Mas, noites de vigília e berreiros à parte, fui crescendo. Meu primeiro dente foi um sucesso! A tia que o descobriu me presenteou com um objeto de porcelana para que tivesse dentes fortes e bonitos.
_____Comecei a andar com um ano, me transformando numa grande exploradora de armários, gavetas e guarda-roupas, cujas portas jamais poderiam ser esquecidas abertas, não traziam sorte. Esmaguei alguns dedos e assim fui perdendo, aos poucos, a mania.
_____Quando andava pela casa com o guarda-chuva aberto (Brincadeira que eu adorava!), ou corria ao redor da mesa, ou deixava objetos em forma de cruz, era um Deus me acuda! Como brincadeiras tão inocentes poderiam provocar a morte de alguém da família? “Para com isso, menina, não sabe que não presta?” “Não prestava” também deixar os chinelos virados, quebrar espelhos, derramar sal e tantas outras que eu não compreendia.
_____Por volta dos cinco ou sei anos, o que eu mais gostava era de algumas das visitas que meus pais recebiam. Eles chegavam e todos ficavam em volta do fogão de lenha ouvindo os “causos” intermináveis que todos tinham para contar, entre uma cuia de chimarrão e outra. A moral da história era sempre aplicável (Isso eu também lembro. Verdadeiro terrorismo!) a nós, as crianças. Eram histórias de mulas-sem-cabeça, de cachorros que eram enormes e acompanhavam viajantes em noites escuras e chuvosas, mulheres de preto que apareciam munidas de lampiões em lugares estratégicos, de pessoas incrédulas que debochavam de determinado fato e eram castigadas por forças do além, histórias de quaresma, de sextas-feiras e tantas mais.
_____Em consequência disso, voltei a perturbar o sono de minha mãe, mas desta vez era por medo mesmo. E de nada adiantava eu me convencer que “era boazinha” (Pelo menos, na hora de dormir eu era) e que aquelas coisas jamais aconteceriam comigo! Quem me garantia que atrás da porta ou debaixo da cama não havia uma “visagem” sem capacidade de discernimento entre pessoas boas ou más?
_____Por volta dos seis anos, perdi meu primeiro dente (Bem que os espelhos da casa poderiam ser cobertos agora)! Foi a minha primeira grande dúvida: deveria jogá-lo no telhado, no formigueiro, no fogo ou deixá-lo sob o travesseiro? Para não incorrer em erro, a cada dente perdido optava por uma delas. Mas a tal fada do dente era pão-dura.
_____No ano seguinte, comecei a estudar e na escola tive a minha grande oportunidade: eu ia participar do casamento caipira, na festa junina da escola. Foi a glória! Vestida de chita, cabelos trançados e sardas pretas no rosto (Nem precisava, eu tinha muitas)! Este foi um acontecimento que ilustrou meus anos escolares seguintes, até o vestido de chita ficar pequeno.
_____Na escola, a hora do recreio era uma alegria! Quando não brincávamos de roda, sempre havia um jogo diferente: brincar de anel, amarelinha, caracol, peteca ou pião. Foi nessa época que caíram por terra todas as coisas maravilhosas em que acreditava: a cegonha, o coelhinho, o Papai Noel, as bruxas, os duendes e as fadas...
_____Quando eu tinha meus treze ou quatorze anos, era magrela e comprida, “uma tábua”, diziam (E isso eu lembro bem, também)! Todas as minhas amigas já eram “moças feitas” e eu me sentia “despeitada”. Algumas amigas da minha mãe ensinaram que tomar água na concha de cozinha fazia crescer os seios (Desespero de causa)! Nunca tomei tanta água na vida!
_____Com dezesseis anos, este e outros problemas estavam superados. Chegava a vez das “correntes” e simpatias para arranjar ou segurar namorado, tais como escrever nomes em papéis que eram colocados sob o travesseiro, dizer, dizer três vezes o nome de certa pessoa cada vez que tropeçasse, algumas cartas que se recebia e quase morria escrevendo cópias para passar adiante, orações e velas para determinado santo e por aí afora. O mês de junho era rico em datas propícias a pedidos e adivinhações, nas quais se acreditava com tanta força que às vezes até dava certo.
_____No dia do meu casamento, foi um tal de esconde-esconde, pois “não era bom” o noivo ver a futura esposa vestida de noiva antes da cerimônia. Nesse dia, um fato peculiar: eu tinha uma amiga que já havia “passado da hora” de casar. A mãe dela, meio sem jeito, me encomendou o “desencalhe” da moça (Tomara que ela não leia isso)! Entrei na igreja como o nome dela escrito em um papel preso dentro do meu sapato. Eu devia, ao dar os três primeiros passos na igreja, repetir seu nome. Juro que fiz isso porque o papel ficou me cutucando o pé, foi impossível esquecer. Hoje, graças a mim, ela está casada e feliz.
_____Algum tempo depois, tive meu primeiro filho, depois minha filha. E de repente, me vi repetindo algumas coisas que já julgava esquecidas e que jamais pensei que faria.
_____Descobri a alegria de embalar uma criança cantando as cantigas que ouvi e aprendi de minha mãe. Fiz muitos, muitos chazinhos. (Não lembro de ter coberto espelhos. Aliás, ficava horas na frente deles, me "vendo" com meus filhos no colo). Uma das coisas que mais gostava de fazer era sentar-me no chão, brincar com meus filhos e passar maravilhosas horas entre histórias, parlendas, charadinhas, pipas, petecas, cirandas e amarelinhas...
_____Ao me levantar, aquela manhã, com a preocupação de realizar o bendito trabalho e depois, ao conseguir escrevê-lo, percebi o quanto tudo o que vivenciei desde a minha infância ainda está presente nos meus dias. Recordei com alegria todas as coisas que, por tradição e “segurança”, repeti com meus filhos: os chás, os benzimentos, as simpatias, os cuidados...
_____E como dizer, do alto do meu ceticismo que busca explicação científica e lógica pra tudo, que fiz tudo isso com a aquela certeza satisfeita de estar fazendo a coisa certa?
_____Hoje, meus filhos estão adultos. Ao olhar para a história de cada um deles, posso ver sinais de outras conhecidas histórias: a minha, de meus pais, de meus avós... E a tarefa, que no início me pareceu tão enfadonha, me fez deu uma alegria imensa por poder recordar e por sentir que estamos todos no mesmo tempo e no mesmo espaço, acumulando, preservando e dividindo inestimáveis riquezas.
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Helena Chiarello
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15/02/2009

Coisas que sei gostar

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

Há um caminho que gosto de percorrer nas minhas tardes. Não tem barulho, nem concreto, nem rostos, nem pressa. Apenas passos, os espaços, paisagem. É um trecho sobre os trilhos da antiga estrada de ferro, que sempre reservo como a última parte das minhas caminhadas. A calma mora ali. Há silêncio, hortênsias, lírios. Há paz, sensações e lembranças. Gosto desse presente, pedaço de passado, intacto e ao alcance.
...
Hoje, um impulso encostou o ouvido aos trilhos para ouvir a saudade do trem. E um sorriso correu com a infância que veio de repente, a contar cada passo sobre os dormentes que se repetiam com a frequência do coração. Aos saltos, desajeitado, ofegante. Mas feliz, com o simples presente de ser.

E poder estar ali.
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Helena Chiarello
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11/02/2009

Hoje

Foto: Helena Chiarello - arquivo pessoal

O relógio do lado, o acordar demorado, a preguiça, a coberta, 
a cortina entreaberta, 
molhada a vidraça, a rua e a praça, 
as nuvens ao léu, o cinza do céu, 
suave garoa, a brisa tão boa, a cor do jardim, a gota, o jasmim, 
a hora acordando, a vida chamando, o tempo bem-vindo, 
o dia, que mesmo chovendo, parece tão lindo!

(Um pensamento florido, um olhar comovido. 
                                Porque existem coisas com tanto sentido?)
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Helena Chiarello
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